É bem como dizia o poeta: ele era um menino valente e caprino, um pequeno infante sadio e grimpante. Sonhava viver no velho oeste, fã de Jesse James, Billy the Kid, Clint Eastwood. Queria lutar contra os Apaches, contra os Peles-Vermelhas, contra os Incas, contra os Maias. Sonhava com Charlie Bronson, achava que com uma única arma poderia exterminar os desgraçados que levaram, ou que levariam, sua filha, sua esposa, sua mãe…
E ele levava a sério essa estória, seu quintal era seu reino, e ele era impiedoso e intolerante com qualquer invasor. Primeiro foram os lagartos. Quantos deles viraram espetinho… Não satisfeito passou a perseguir os passarinhos. Jogava arroz no quintal. Mais ou menos como se faz com a quirela pros peixes. E preparava seu bodoque. Bodoque esse que ganhara com a mesma alegria de quem ganha na loteria. Pau de goiabeira, bifurcado, arredondado, gostoso de se pegar , borracha cirúrgica e um pedaço de couro. Um bodoque perfeito, sem mais nem menos. Um bodoque perfeito. E os passarinhos sempre caiam, sempre eram pegos pela sua armadilha. E ele assim como os mitológicos caçadores de dragões, os abatia, e pendurava as carcaças pra expor sua vitória. Não aceitava que nenhuma criatura invadisse seu reino. E com o tempo, com o treino sua mira só fazia melhorar. Até chegar ao ponto de acertar tiros perfeitos de vários metros, encontrava e acertava no muro que dividia o lote algumas tanajuras, tanajuras essas que eram consideradas como monstros. Monstros mesmo. Porque uma picada de uma formiga dessas…
Quando percebera que seu reino já estava completamente dominado, partiu então para a expansão de seus domínios. E para isso ganhara de seu avô um incentivo de valor inestimável: uma arma de pressão.
Já era hora de dominar a rua. Já era hora de se estabelecer no portão da frente. Não era possível que tantas pessoas, que tantos gatos e cachorros, violavam a frente de seu castelo impunemente, sem sua permissão, não é possível que o desrespeitassem tanto quanto via acontecendo.
Primeiro armado de seu bodoque. Esperava enfrentar esses novos perigos com suas velhas armas, afinal, era necessário primeiro treinamento e aprendizado, pois no seu reino de um soldado só ele se gabava de ser o melhor atirador, ele se gabava de ter a melhor pontaria, e não arriscaria a perder o titulo, o status, desperdiçando munição com tiros sem rumo.
E assim o fizera. Primeiro afugentou um por um todos os gatos que passeavam pelo portão baixo de sua casa. O mesmo o fizera com os cachorros. Os pássaros já não mais pousavam nem em seu quarteirão, pois eram conhecedores da carnificina de que seus pares foram vitimas. Demoraram. Mais aprenderam.
Dentro de pouco tempo seu domínio já era conhecido por vários invasores. Mas havia alguns outros que representavam um perigo real. E que seriam difíceis de serem derrubados.
De duas em duas noites passava o caminhão de lixo que recolhia todo o lixo de sua casa, pra ele estava tudo bem que o fizessem, mas o olhar ameaçador e os gritos dos lixeiros que corriam atrás do caminhão, ele os via como desafiadores, como ameaçadores, e precisava lhes mostra que ali, pra passarem ali deveriam fazer isso com respeito e o melhor seria que o pedissem o permissão.
Tinha também o carteiro, que sempre violava os portais de seu castelo e ousava colocar a correspondência por debaixo da porta. Ele ousava, abrir a portinhola (que se localizava bem ao centro do pequeno muro de dez palmos que separava o reino do território rebelde, caminhar vagarosamente, quase que desafiadoramente pelos longos dez metros que separavam a portinhola da porta da frente, ia e voltava impunemente…
Esse, aliás, foi um de seus primeiros alvos depois da planejada expansão de seu reinado, e graças a sua enorme habilidade com o bodoque, já o acertara, mas o contra-ataque foi absolutamente inesquecível. Aquele gigante, estava claro: poderia vencê-lo.
Começou a imaginar então como impor respeito aos homens do lixo, que cada vez que voltavam pareciam desafiá-lo mais e mais e mais e mais.
Um exército seria necessário. Se não o possuía em seu reino, teria de encontrar mercenários, que trabalhariam por algum pagamento. Teria de ensiná-los a atirar. Teria de mostrar-lhes comando. Deixaria se ser soldado e rei e passaria a ser general e rei. E esse titulo lhe caia melhor.
A recruta foi simples, e aqui não me cabe dar detalhes das negociações e nem dos acertos, só me vale ressaltar que, estava claro, a retórica era parte de sua personalidade, assim como a pontaria. Duas grandes características, para um grande general.
Agora ele comandava um grupo de assalto, com três homens além dele. Todos armados de bodoques, confeccionados por um quarto homem a quem fora designada a nobre função de armeiro, era dele a responsabilidade pelas armas e pela munição do grupo. Era também ele o responsável por informações táticas que pudessem ser úteis ao grupo de ataque.
Eram como pistoleiros do velho oeste. Eram como um grupo militar de elite. Eram realmente perigosos como seus bodoques a mão.
Ataque armado e grupo mobilizado. A primeira missão era clara: o carteiro.
Depois daquela tarde ele nunca mais entraria tão soberbo em terras que não lhe pertenciam.
O plano era simples. Ataque direto. Estilingadas. Pedras. Por todos os lados. Voando soltas. E o golpe de misericórdia seria um tiro. Com a arma de pressão. A munição já estava preparada. Os atiradores já estavam preparados. E a hora já se aproximava.
Seu homem responsável pelo comando tático da operação havia preparado ainda mais um surpresa. Uma linha de nylon. Transparente. Mas de grosso calibre. Atravessando o caminho entre a portinhola e a porta da frente. Bem no meio dele.
Bem é isso a hora havia chegado. Bodoques preparados. Armadilha preparada. O carteiro se aproxima. Para bem enfrente ao portão. Confere a correspondência. Separa as cartas que deixaria ali. No número 413 da Rua São Paulo. Abre a portinhola. E depois de 7 ou 8 passos cai. É o sinal. Começa a receber pedradas. Que lhe acertavam por todos os lados. Agonizava. Gritava de dor. Uma acertará e quebrará seus óculos.
Pra ele, aquilo tudo era como poesia. Era como se ele ouvisse “Luz e Mistério” do Beto Guedes no lugar dos gritos de dor e das gargalhadas de satisfação. E seus soldados não mostravam compaixão. Não mostravam sentir pena. Em nenhum momento. Atiravam sem dó.
Depois do oponente já batido. Ele se aproximou. Com sua arma pronto pra dar o tiro de misericórdia. E apreciava, camuflado, cada segundo daquele doce momento. Vitória. Sua primeira vitória como general. Estava também impressionado com a semelhança que sua arma tinha de uma arma “de verdade”. O metal, o peso, a madeira.
Seria só um tiro, um vergão é fato, mas que com certeza inibiria de vez aquela ameaça.
Quando estava próximo o bastante para não errar o tiro, afinal ainda não tinha com seu revolver quanto tinha com seu bodoque, mirou na nadega esquerda e…
Uma explosão. Em todo quarteirão. Uma explosão ressoou por todo o quarteirão. Parecia um rojão da festa de Cosme e Damião. Um barulho estrondoso. Que chegou a doer nos ouvidos. Dele e no de seus comandados. E o coice?! Nunca sentirá tamanho coice em suas práticas de tiro. O coice lhe arremessará por dois talvez três metros pra traz.
Aquele poder de sua arma ele ainda não conhecerá.
É certo que seu pai guardava em casa uma Colt 45, modelo que é certo serviu de base para a réplica que ganhou de seu avô. Encontrou um dia essa arma de seu pai, em uma caixa de madeira. Dentro de um armário. Em um quarto usado apenas para entulhar badulaques e bibelôs.
Ficava em um compartimento superior desse mesmo armário. Sua mãe já o alertará sobre isso, e ele sabia que essa arma ficava escondida justamente por ser perigosa e portanto não poderia cair em mãos erradas.
Perigosa sua arma também era, pois com ela já tinha conseguido matar um pássaro com apenas um tiro, com seu bodoque eram necessários três ou quatro tiro certeiros na mesma ave.
Guardar sua arma como e onde seu pai guardava a dele era uma atitude óbvia. E seria demais cobrar de seu armeiro que ele não se confundisse com as armas, afinal ele não fora avisado sobre a semelhança e a possibilidade de encontrar outra arma no lugar em que seu general guardava a dele.
O sangue que jorrava do carteiro estendido ao chão e os gritos de pavor de seus soldados mostravam o desastroso resultado daquele ataque.
Desastroso?
Desastroso mesmo?
É claro que ele não sairia dali impune, mas o carteiro também não.
Mas o sangue os gritos já lhe compensariam tudo. Ainda tentou outro tiro, mas parece que a arma estava descarregada. Com apenas uma bala na agulha.
O funcionamento daquela arma era relativamente simples: os cartuchos são carregados em seis câmaras, cada uma podendo ser posicionada na frente do cano da arma. Um martelo carregado por mola é posicionado no outro lado do cilindro, alinhado com o cano. A idéia é armar o martelo para trás, alinhar um novo cartucho entre o martelo e o cano e, em seguida, liberar o martelo puxando o gatilho. A mola lança o martelo para frente, atingindo assim, o estopim. O estopim explode, inflamando o propulsor que expele a bala para fora do cano.
O interior do cano é forrado com estrias espiraladas que giram a bala para dar estabilidade. (HowStuffWorks)
A bala atravessou a vitima, um pouco acima da altura dos rins. Sorte do carteiro. Não fora um tiro fatal.
Mas para quem atira com aquele gosto. Com aquela vontade. Foi muito melhor do que o planejado. Alcançou resultados muito superiores aos desejados.
O carteiro jurou nunca mais passar por ali. Seus soldados deserdaram. Todos menos o armeiro. Por meses foi castigado. Exemplarmente castigado. Seus vizinhos nunca o perdoariam.
Mas mesmo recluso em sua masmorra, com seus cabelos lisos desarrumados, bermudas amarrotada e camisa listrada. Um sorriso ameaçador não saia de seus lábios.
Mesmo recluso ele ainda se comunicava com seu armeiro. Outros ataques ainda seriam planejados. Agora maiores. Com mais poder. Com maiores objetivos.
Havia disparado seu primeiro tiro.